Por Patrick Murphy
- Vida e estudo de Jacob do Bandolim
Viso aqui analisar de forma histórica e afetiva o choro Doce de Coco (1951), de Jacob do Bandolim. Para tanto, buscarei entender a relação que este teve com o choro. Usarei também a partitura para entender os processos técnicos empregados pelo compositor para fazer uma leitura mais próxima da construção criativa desta música.
Jacob do Bandolim foi um músico de choro que se relacionou intensamente com este estilo de música. A sua obsessão é percebida no cuidado que este teve com seu arquivo pessoal, que unia inúmeras gravações e obras referentes apenas a este estilo. A biógrafa Ermelinda Paz (1997) se refere a isso no seu livro “Jacob do Bandolim”.
Jacob foi se firmando no meio musical como um músico sério, muito preocupado com a preservação das nossas raízes culturais. Dessa preocupação nasceu e se cristalizou um intérprete inesquecível (p.33).
Na fala da autora você pode notar não só a obsessão de Jacob, como também a preocupação deste com a cultura brasileira, um tema recorrente na sua obra. Em uma entrevista encontrada gravada no Museu da Imagem e do Som (MIS), Jacob define o choro de forma afetiva e valorizando a figura do intérprete, quando diz:
Melodia de compasso dois por quatro e que caracteriza por frases sentimentais ou modulações inesperadas, e se por vezes alegre, deve se ao andamento que lhe é imprimido (JACOB DO BANDOLIM, 1967).
Jacob na mesma entrevista utiliza-se de uma palavra importante que diz muito sobre sua relação com o choro: tributo. Diz que é necessário pagar tributo ao passado, aos grandes chorões que já viveram. Na mesma entrevista, ouvimos Jacob dar sequência a sua definição de choro.
Taí o sentimento imprimido ao choro, taí a cobrança do tributo, exato. Da polca, originária da Europa, dançante e modulada, originou-se o choro. No Brasil, as três raças tristes, cobraram o seu tributo tornando-a mais lenta e melodiosa, porém, dançante ou não, continuaram conhecidas como polcas, não há quem encontre em impresso ou disco dos mais antigos o vocábulo choro, todas eram polcas, mas como emocionavam quem as tocava ou ouvia, eram denominadas músicas de choro, de fazer chorar (JACOB DO BANDOLIM, 1967).
Nesta fala, Jacob também mostra preocupação sobre um assunto que o choro se relaciona intimamente, que é a cultura brasileira e a implicação direta que esta tem com a história do Brasil colonial e imperial. As três raças tristes aqui referidas são as raças do colonizador português, o índio e o escravo negro. Gilberto Freyre levanta tal discussão no seu famoso livre Casa Grande e Senzala. Talvez possamos concluir nessa fala de Jacob que este não estava apenas preocupado com a preservação da música popular brasileira, mas também com a preservação da cultura brasileira como um todo, e que sua música pudesse de alguma forma transportar o ouvinte para outro momento histórico do país, por melhor ou pior que fosse o passado Brasileiro.
- Compreensão do choro Doce de Coco
Agora que você pode entender melhor a relação de Jacob do Bandolim com o gênero de choro e a importância que o compositor deu para a cultura brasileira, pode compreender a composição Doce de Coco. Escutando a música, pode-se perceber rapidamente que este choro não é tocado com tristeza, como o próprio compositor descreveu sobre o choro antigamente. Muito pelo contrário, é uma música que traz uma sensação alegre. Para entender tal contradição, voltamos novamente para a entrevista de Jacob encontrada no MIS (Museu da Imagem e do Som), em um trecho que este discursa sobre a importância de Pixinguinha, considerado por Jacob um dos grandes ícones do choro.
O choro, choro mesmo, teve uma grande definição foi com Pixinguinha. Pixinguinha deu rítmica ao choro. O choro até então era considerado uma coleção de músicas para chorar, fazer chorar (JACOB DO BANDOLIM, 1967).
Ouvindo o choro Doce de Coco, dá para perceber essa “rítmica” que Pixinguinha deu ao choro, que para Jacob provavelmente foi a forma dançante e alegre de se interpretar o choro, que antigamente era limitado pela forma melancólica dos antigos chorões de interpretar músicas deste gênero.
Outra característica que aparece nessa composição é a forma binária, com ambas as partes na tonalidade de Sol maior. O choro tradicionalmente é composto na forma ternária, e suas partes são normalmente separadas com a primeira parte em uma tonalidade, a segunda parte indo para a tonalidade relativa da primeira, e a última parte estando na mesma tonalidade da primeira parte, mas sendo no modo contrário (isto é, se a primeira parte estava em G maior, iria para G menor, e vice-versa). Sobre a forma binária que Jacob escolheu, podemos nos voltar novamente para uma referência deste ao mestre Pixinguinha, sobre a música Ingênuo, também em forma binária.
O Ingênuo representa […] o que de mais típico possa ter um choro: a beleza da melodia, a beleza da harmonia, a rítmica, o encadeamento das modulações muito bem feito, embora tenha apenas duas partes, isso é a única coisa que ele foge ao choro comum (JACOB DO BANDOLIM, 1967).
Neste trecho da entrevista, Jacob mostra preocupação com a manutenção da tradição, mas não demonstra ansiedade com o fato de Pixinguinha ter composto uma música com apenas duas partes. Além disso, ele enaltece a beleza da melodia e da harmonia, além das modulações bem feitas. No seu choro Doce de Coco, o compositor também busca essas qualidades, em particular modulações inesperadas, algo que ele valoriza e que ele diz fazer parte da cultura do choro de quintal (JACOB DO BANDOLIM, 1967).
Neste choro referido, existem algumas modulações inesperadas dentro das tradições do choro, como a mudança de Sol maior para Sol menor, no compasso 18, além da modulação para Si maior saindo de Sol maior, no compasso 46, voltando para o próprio Sol Maior no compasso 51. Essas modulações são incomuns no choro, levando em consideração o que foi dito anteriormente sobre o caminho harmônico entre as partes dos choros ternários. Além disso, a falta de modulação na mudança da parte A para a parte B é também surpreendente, pois são raros os choros que tem essa característica.
Apesar das modulações surpreendentes no Doce de Coco, não posso deixar de mencionar a manutenção de certas características tradicionais, como a figura da síncope na melodia, a utilização majoritária de tríades (com exceção dos acordes dominantes com sétima), e o compasso em 2 por 4.
Uma característica que merece atenção especial é o título da obra. Quando Jacob dá o nome do choro de Doce de Coco, o que podemos esperar em primeira instância é um choro alegre e divertido. Não somos decepcionados nesta expectativa. Contudo, devemos entrar mais a fundo no sentido deste doce nordestino para entender a real significação que o autor quer dar para sua música.
O Doce de Coco, também conhecido como sabongo ou sambongo, é um doce que tem as suas origens nos tempos coloniais, no Brasil escravocrata que tinha como suas duas esferas sociais principais os senhores de engenho brancos, donos de latifúndios e os escravos negros africanos que trabalhavam a terra em nome dos seus donos.
É oportuno mencionar aqui a relevância da cana de açúcar no Brasil colonial, produto explorado exaustivamente e exportado em larga escala para Portugal. Este produto é simbólico daquele Brasil, local que representava vantagens econômicas e terras férteis para a exploração mercantilista dos poderes imperiais europeus. Simboliza também a precariedade da alimentação da população do Novo Mundo.
Raros eram as casas de engenho que ofereciam produtos de animais para a alimentação, como carne vermelha, ovos, leite e outros derivados. A maioria dos brasileiros vivia mal nutrida. Não eram raros os casos de disenteria e má nutrição neste Brasil do passado que tinha uma dieta precária (FREYRE, 1997). Para melhor entendimento desta época, nos voltamos para um trecho do livro “Açúcar: Uma Sociologia do Doce” (1987).
A marmelada, o caju e a goiabada tornaram-se desde os tempos coloniais, os grandes doces das casa-grandes. A banana assada ou frita com canela, uma das sobremesas mais estimadas das casas patriarcais, ao lado do mel de engenho com farinha de mandioca, com cará, com macaxeira; ao lado do sabongo [doce de coco com o mel de engenho] e do doce de coco verde e, mais tarde, do doce com queijo – combinação tão saborosamente brasileira (p.57).
Nessa descrição, Freyre utiliza do Doce de Coco e outros doces para descrever o passado nas casas de engenho do Brasil colonial. O interessante para nós aqui é lembrar que Jacob do Bandolim era um compositor e instrumentista apegado a preservação da história brasileira. Utilizando este doce como título de sua música, Jacob não está apenas descrevendo uma sensação auditiva que ele quer que o ouvinte sinta de forma sinestésica (o gosto do doce de coco transportada para a escuta), mas também quer reviver no ouvinte um passado histórico impossível de vivenciar literalmente. Vemos aqui um exemplo da utilização da música para a revitalização de um momento histórico que jamais será revivido fora do âmbito artístico.
Talvez sem saber, Jacob conseguiu nos oferecer na sua música não somente melodias memoráveis e sequências de acordes criativas, bonitas por si só, mas também uma passagem de volta ao Brasil do passado. Como o Brasil que Jacob viveu no século XX, o Brasil colônia era também um país com ampla diferença econômica entre as classes, com poucos tendo o controle sobre os meios de produção. Era também um Brasil pobre, com problemas de saneamento, saúde, educação e infraestrutura.
Apesar de tudo, o compositor encontrou um alimento doce, feito na base do açúcar, este produto simbólico daquela era passada, para transportar o ouvinte ao Brasil do passado.
- Conclusão
Procurei aqui entender essa composição do Jacob do Bandolim pelo sentido afetivo e histórico, abrindo mão de algumas características técnicas da análise musical. Algumas características deste tipo devem ser mencionadas aqui para não serem descartadas na sua relevância.
Uma destas é a repetição de trechos melódicos, como, por exemplo, na primeira frase, entre os compassos 3-6, que é ouvida novamente logo em seguida um tom acima. Essa frase reaparece então no modo menor nos compassos 19-22. Na parte B isso também ocorre, mas com a repetição exata da primeira frase logo em seguida de terminar esta. Na parte B, temos o ápice melódico no compasso 61, com a nota mais aguda da composição.
E, como já mencionado, harmonicamente Jacob trabalha com modulações poucos usuais no choro e a ausência da modulação na mudança das partes, outra característica incomum. Fora estas considerações importantes, Jacob utiliza de progressões de acordes comuns no choro, frases melódicas sincopadas, e a linha de baixo geralmente seguindo sentidos cromáticos ou do ciclo de quartas.
Fora do sentido técnico da análise musical, encontramos uma recorrência afetiva de Jacob na sua relação com o choro. Não é a primeira vez que este usa um nome de um doce tradicional brasileiro para dar nome a uma música (existe também o choro Pé de Moleque) ou tampouco algo que é ligado intimamente a uma tradição brasileira (A Ginga do Mané, sobre o jogador de futebol Garrincha). Suas entrevistas, também, estão sempre impregnadas de saudosismo, seja sobre o Brasil do passado ou sobre os músicos de choro antigos.
Não é de se surpreender que este músico, apesar de ter contribuído para mudanças estéticas na música brasileira, se identificasse com o choro sempre tradicional, e resistiu a mudanças estéticas de grande escala.
Para se ter uma compreensão mais detalhada sobre Jacob e sua obra, imaginamos que outras obras musicais deste compositor possam ser analisadas, além de suas interpretações e improvisações. Suas entrevistas dizem muito a respeito sobre sua obra, além de trabalhos escritos sobre o assunto.
Jacob foi uma figura central no choro e até hoje sua influência é sentida nas rodas e apresentações. Talvez hoje possamos entender melhor a importância deste homem para a manutenção desta música secular como tradição brasileira, como estilo instrumental que possa nos transportar para um Brasil do passado, mas sem deixar de ser inserida no Brasil de hoje.
Conheça Aqui o Professor Patrick Murphy
Bibliografia
PAZ, E. Jacob do Bandolim. Rio de Janeiro. Funarte. 1997.
FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro. Record. 1997. 32ª Edição.
FREYRE, G. Açucar: Uma Sociologia do Doce. Rio de Janeiro. Record. 1987. 21ª Edição.
BITTENCOURT, J. P. Depoimento de Jacob do Bandolim ao Museu da Imagem e do Som. São Paulo, 1967.
CLÁSSICOS DO CHORO BRASILEIRO – JACOB DO BANDOLIM VOLUME 2. 1ª edição. Partituras para flauta, clarinete, sax soprano, sax alto e bandolim. São Paulo. 2008.
Artur nobra
12 mar 2017A obra Doce de Coco de Jacob do Bandolim tem parceria dada por Jacob a a João Pacifico que colocou letra e foi gravado por Isaurinha Garcia/ RCA 8013898 com participação de Jacob ao bandolim.
Mauricio Araujo
18 fev 2018Ótimo texto. Vale citar também que consta em diversos depoimentos a referência ao especial gosto de Jacob por todo tipo de doce. Infelizmente não posso citar especificamente quais depoimentos, mas é possível encontrá-los no site do Instituto Jacob do Bandolim.
Beatriz
4 dez 2020Muito bacana! Apenas uma consideração: é mais interessante usar o termo “indígena” para referir-se aos povos originários do que a palavra “índio”, que carrega uma visão simplista e estereotipada. No mais, agradeço a contribuição.